A REPRESSÃO DA GENIALIDADE


Este é um diálogo entre um psicólogo e um físico. Ele toca em muitos pontos sobre religião, crença e fé. Neste formato, eu exponho mais pormenorizadamente minhas idéias sobre esses assuntos. Quem quiser conhecê-las; aí estão. Pois, fique a vontade, aproveite e divirta-se.


Luiz, talvez você seja a pessoa indicada para me ajudar num pequeno impasse que, há algum tempo, tem ocupado meu espírito.

– Tamos aí, né? Manda. Pelo menos, alguma bobagem você vai ouvir.

– Sei que, de você, posso esperar mais que isso. Conhece a estória bíblica do sacrifício de Abraão?

– Sei... O sacrifício de Isaac, você quer dizer.

– Já percebi que tem uma opinião formada a respeito. Eu ainda não consegui ter nenhuma. Por mais que medite, nunca tenho um bom argumento para redimir Abraão, nem os muitos que tenho lido ou ouvido, com o mesmo intuito, fizeram sentido para mim. Não importa quanto seja minha predisposição ao contrário, tudo que vejo é uma tentativa fria e premeditada de assassinato de uma vítima totalmente indefesa. De que modo a tal fé inquebrantável de Abrão justifica seu ato? O que está me escapando? Por que não concebo nada além de um proceder detestável na conduta de Abraão?

– Simples, meu amigo – e não sei porque te apoquentas tanto com isso – o que vê é tudo que há para ver. Não se pode tirar leite de pedra. Todas as defesas feitas até hoje são falhas, o tão reiterado argumento da fé foi sempre mal utilizado. Abrão não enfrenta dilema algum, se a fé lhe for imputada de antemão. Não se deixe enganar pelos eufemismos ou subterfúgios; sendo sua fé preexistente aos fatos, Abraão assassinaria, sim, o próprio filho por ordem de Iavé e seria um completo idiota se recusasse a tarefa. Aliás, se fizesse isso, idiotia seria pouco, tal atitude faria estarrecer até o mais notório dos idiotas.

– O que disse? Na posição dele faria o mesmo?

– Na posição dele, sim. Não há muito que raciocinar. Se ele crer na infalibilidade de Iavé, matar o filho, por ordem direta do próprio, é o certo e o errado é não fazê-lo. Ele nem precisa se preocupar com o filho, crendo que Iavé só pratica o que é bom e justo, não tem dúvida que a morte será um bem para Isaac, seria um mau pai se o privasse disso. Tudo é muito tranqüilo, nada há para inquietá-lo, Abraão acredita piamente que é instrumento da bondade divina, portanto não vive, em nenhum momento, qualquer conflito moral. Ele nem pode se sentir prejudicado, pois o bem que espalha é para todos, inclusive para si mesmo.

– Ele não tem opção.

– Nenhuma. Se não duvida da bondade suprema de Iavé, qualquer outra alternativa seria muito mais que estupidez. Por mais imbecil que alguém pudesse ser, não encontraria um mínimo detalhe capaz de confundi-lo na situação de Abraão. Já está claro para ele que tudo vindo de Iavé é certo, logo fazer o que Deus manda é tudo que lhe basta para estar certo, prescinde do esforço de saber se é correto ou não. Ora, para tropeçar antes é preciso andar. Por mais embriagado que esteja um bêbado, ele nunca iria tropeçar, se permanecesse sentado. Assim, qualquer outra opção não prestaria nem para um imbecil de carteirinha.

– Então, aceitando os termos de Abraão, para escolher o mal, antes ele precisaria ir além da estupidez.

– Certo. Imagine isto: você não quer, não tem motivos, nem está sendo obrigado a morrer. Mas, diante de si, encontra-se um copo de cicuta. É de seu total conhecimento que cicuta mata, sem meios-termos. Não há outro copo além deste sobre a mesa. Estamos num impasse? Você entraria no dilema: “beber ou não beber, eis a questão”?

– Claro que não.

– Por certo que não. Não se pode construir um dilema com isso, duas opções são necessárias; beber não é uma opção. É um contra-senso tão grande que chega a ser inconcebível supor que alguém, em sã consciência, beberia o veneno. Alguns filósofos postulam que esse seria o supremo ato de liberdade ou, talvez, o único; fazer algo absurdo, cometer uma ação paradoxal. Para mim não passaria de uma total inconseqüência e um tremendo despropósito. Reservo os termos absurdo e paradoxo para outras conceituações mais interessantes.

– Tenho aprendido a programar computadores e existem as tais linhas de decisão num programa. Pelo que você diz, o nome delas não é adequado, esses comandos não possuem nenhum poder decisório, o termo condicional nunca lhes deixará mais que uma única alternativa, não importando quantos desvios sejam inseridos. E para o programa rodar, o método que verifica a condição deverá ser totalmente livre de ambigüidades; pois se surgir dúvida, ele não foi bem feito.

– E se o método verifica precisamente o que foi imposto, o programa passa a estar certo do que deve fazer, não tem que decidir nada, não lhe sobrou opção.

– Logo, se não tinha opção, não importa o que tenha feito, Abraão não foi responsável por seus atos.

– Legalmente, diríamos que foi induzido, agiu sem malícia, foi apenas um inocente útil. Como se não tivesse a maioridade jurídica.

– Não era portador de uma emancipação moral.

– Sim. Estava sob posse, guarda e tutela de Iavé.

– Sob o pátrio poder de Deus.

– Pátrio poder outorgado pela fé prévia do próprio Abraão.

– Sendo assim, a fé não o redime, não o salva, unicamente o exime da culpa. Não há nada de grandioso nisto.

– Nada. Ele angaria o perdão apenas porque não sabe que faz o que faz.

– Então, pergunta-se: que diabos queria Iavé com toda essa encenação? Qual o propósito oculto em pedir a Abraão seu único filho em holocausto? Por que testar sua fé de um modo tão radical?

– No fundo, testar a fé significava pôr à prova seu pátrio poder, ver até onde iria a obediência de Abraão. Como hoje faria um chefe mafioso para garantir a submissão de um capanga: “Se mataria, sem pestanejar, seu próprio filho ao meu mando, deve fazer qualquer outra coisa por mim”.

– No caso, o capanga faz por algum interesse. E Abraão?

– Ele faz por não ver nada de errado em suas ações; muito pelo contrário, acredita que elas são tudo o que de mais correto e bom haja para ser feito. E é justamente isso que o contenta; essa satisfação fácil e imediata de saber que incorpora em seus atos a perfeição divina.

– E por que nada lhe ocorre além dessa visão simplista de si mesmo?

– Porque está obliterado pela fé. Ele está tão imbuído de seu ideal que suas reais condições lhe escapam. Pode cometer as maiores atrocidades e não se dar conta do significado efetivo de seus atos. A coisa toda pode estar bem ali, na sua cara, que a ficha não lhe cai.

– A fé o torna ignorante.

– Não. É pior. O torna burro, tapado. Algo que difere muitíssimo de apenas ser ignorante. A ignorância não é um demérito em si mesma. Todos nós somos ignorantes, em maior ou menor grau, num assunto ou outro. Ignorar é simplesmente desconhecer, não ter informação a respeito. Logo, até Einstein era um ignorante em algum aspecto. No entanto, providos de inteligência, podemos reverter, ou ao menos minorar, qualquer estado de ignorância. Pois, uma vez detectado, pode-se buscar modos de suprir, o mais possível, a carência de dados. Para o estúpido, ao contrário, a ignorância é muito mais sem jeito. Ele terá imensas dificuldades para reconhecer as informações de que necessita e descobrir onde e como obtê-las. Isso quando muito; em geral, eles nem mesmo perceberiam que ignoram alguma coisa.

– É o caso de Abraão?

– Antes fosse. Temos aqui, isto sim, um estado extremo de idiotia aguda em que a ignorância não tem nenhuma participação. Tudo está explícito, cada detalhe exposto, nada de relevante foi subtraído de suas vistas, os subsídios para o entendimento lhe estão disponíveis de imediato. E, apesar disso tudo, irritantemente o cara não saca nada.

– Como um analfabeto diante de um letreiro.

– Ainda não é isso, meu amigo. O que está lhe acontecendo hoje, o mal de Abraão lhe contaminou?

– Talvez.

– Não, definitivamente não. Abraão sabe ler, conhece cada palavra, consegue dar sentido às frases. Contudo, o texto não lhe transmite absolutamente nada. É isso que quero dizer; a fé não tirou dele o que sabia, seus conhecimentos estão intactos, nem lhe escondeu nenhuma informação. Porque tudo isso ela tornou inútil, ao conduzir nele algo muitíssimo mais debilitante; aniquilou a sua capacidade de intuir significado, de conceber o todo a partir de suas partes. Para ficar mais claro: ela não cegou sua percepção, cegou seu discernimento; Abraão percebe, mas não entende...

– Esta é uma situação muito deprimente...

– Mas pode ser muito engraçada vista de outro ângulo.

– Como assim?

– Conhece a piada dos dois tchecos, o Manoel e o Joaquim?

– Não acredito. Você vai querer contar uma piada numa hora destas?

– Vou e por que não? Você vai gostar e tem tudo a ver.

– Tá certo. Mas não a alongue demais, nem entre numa de me explicar o final. Explicação não adianta nada, a graça já está perdida mesmo, só consegue deixar sem graça quem não entendeu.

– Tudo bem, tudo bem! Então, vamos lá (desculpe se não consigo imitar muito bem o sotaque característico dos tchecos):

Manoel, chegando ao torrão natal, encontrou seu amigo Joaquim e foi logo dizendo:

– Sabes Joaquim, esses brasileiros não são tão espertos assim como se vangloriam.

– E não são não, Manoel?

– Pois que não são mesmo, Joaquim. Pude comprovar por experiência própria na viagem de volta, ora pois.

– Por certo que sim, Manoel. E como foi?

– No navio havia um brasileiro, Joaquim. Ele veio a trocar conversa. Então, muito argutamente, usando o preconceito infundado que eles têm de nossa gente, disse-lhe que eu era um grandessíssimo parvo.

– Manoel, por que disseste isso? Não tem cabimento, tu és o sujeito mais inteligente que eu conheço.

– Ora bolas, Joaquim. Sei bem o que sou. Eu estava só querendo enganá-lo.

– Ah bom, Manoel. E funcionou?

– Às mil maravilhas, Joaquim... Às mil maravilhas. Tu podes não acreditar, mas ele levou completamente a sério o que eu disse. Olhou pra mim e falou, fazendo aquele jeitinho matreiro dos de além-mar: “Não diga... e eu que desisti de lhe aplicar alguns golpes, achando que os desperdiçaria com você”.

– Ele disse isso, Manoel?

– Pois não disse, Joaquim. O pobre idiota deixou escapar isso ingenuamente. Mas eu não perdoei não. Não deixei de aproveitar a mancada do sujeito e logo emendei ladinamente: “Pois que não seja por isso, aplique-os todos em mim e verás o que digo; podes ter certeza, nenhum deles será desperdiçado”.

– Quanta coragem, Manoel. E ele foi na tua lábia?

– Relutou um pouco, Joaquim, mas não resistiu ao desejo de me ver cair em contradição. Tanto é que foi me aplicando golpe após golpe, até uns bem bobinhos, para ver se me pegava de calças curtas.

– E ele conseguiu te pegar, Manoel?

– Não, claro que não, Joaquim. Eu não dei meu braço a torcer, continuei firme caindo em todos golpes, mesmo aqueles mais fraquinhos que ele punha de propósito só para me confundir.

– E ele, em nenhum momento, percebeu a peça que tu estavas lhe pregando, Manoel?

– Não, Joaquim, a pobre besta não teve nenhuma ponta de desconfiança; em nada supôs que eu, na realidade, estava fingindo. Era tão idiota que foi insistindo até esgotar todo o seu repertório de golpes. E não satisfeito, passou a inventar novos. Na sua espantosa estupidez, prosseguiu fazendo papel de tolo e tomando meu tempo. Minha paciência já estava chegando ao limite, Joaquim.

– E o tempo que tu o aturaste foi muito longo, Manoel?

– Foi além da conta, Joaquim. Passou das medidas, se queres que o diga. Ele não se mancava e tive que tolerar sua obtusa teimosia por mais tempo que pretendia.

– E por quê, Manoel? Não podias dar um basta na aporrinhação, despachando o sujeito de uma vez?

– Não, Joaquim. Não vês: se o fizesse, estaria me dando por vencido, arregando. Só fiz isso quando tive uma boa justificativa, mas ela demorou muito para acontecer.

– E que justificativa foi essa, Manoel.

– Ter acabado finalmente, Joaquim, a grande quantia em dinheiro que trazia no bolso.

– Que maçada hein, Manoel? Ele ficou a te aborrecer sem parar enquanto durou teu dinheiro? Ainda bem que para tudo há um fim.

– Graças ao bom Deus, Joaquim. Não tenho dúvidas que o chato idiota teria me incomodado indefinidamente, não fosse o providencial esvaziamento da minha carteira.



– Legal. Mas alguém já lhe disse que se deve finalizar a piada no seu gancho?

– Eu sei disso, mas não me contive em dar esse arremate. Não foi tão mau, foi?

– Digamos que não. Mas voltando à vaca fria, esses tipos de piadas ilustram uma burrice factível? Não são elas apenas um exagero cômico?

– Antes fossem, antes fossem. Infelizmente, a burrice cômica é tão comum que passa despercebida. Ela está em Abraão camuflada em drama, onde podemos ver o quanto é perigosa. Isaac foi sua vítima em potencial. Talvez mais que isso, se levarmos em conta o trauma de ter sido quase morto pelo próprio pai.

– Pode-se dizer, desse modo, que a fé é uma espécie de burrice consentida.

– Sim, pois ela é uma certeza sem fundamento. E para aceitar plenamente isso, antes é necessário tornar-se burro. Se assim não fosse, ficaríamos perturbados a cada momento que nossa inteligência nos lembrasse do fato. Enquanto não fosse calada por completo, essa voz íntima e impertinente, contrariando todos os nossos desejos, teimaria em chamar nossa atenção para coisas que já não convém saber. Uma adesão irrestrita e abnegada a crenças que, por princípio, são prontas, acabadas e incontestes, requer essa mudez intelectual compulsória. Ou a conversão nunca seria completa, jamais conseguiríamos consumar uma entrega confiante e sem reservas. Como, também, impediria que fossem empreendidas caminhadas resolutas para o cadafalso. Como pisar firme e seguro com uma pedra dessas no sapato? Um crente devoto não obteria sua “paz de espírito” sendo incomodado assim por esses inoportunos avisos de falta consistência. Para ele, certas faculdades mentais constituiriam-se apenas num grande transtorno, no qual não veria nenhuma utilidade; no seu ponto de vista, algo muito comparável a amídalas inflamadas. Seria, então, levado a admitir que tais aptidões não passariam de empecilho ao seu suposto desenvolvimento espiritual, nada além de um estorvo atrasando a sua tão aguardada beatitude. Perante uma constatação como esta, se sentiria compelido a concluir que o intelecto ativo não é apenas mais um entrave para a concretização da suprema virtude teologal, mas o próprio gerador de todos os obstáculos. Eis, pois, a solução final do seu embaraço e a atitude mais louvável do fiel em prol da fé: empreender o implacável banimento de qualquer atividade racional de alto nível para a obscuridade e o isolamento, despendendo um esforço tenaz para abafar suas denúncias e torná-las impotentes e esquecidas. Toda a austera e rígida disciplina ascética dos monges penitentes tinha como intuito conflagrar a fé, através de práticas que brutalizavam e afugentavam a inteligência humana natural.

– Você diria que filósofos como São Tomás de Aquino e Santo Agostinho se fizeram burros para abraçar a fé cristã?

– Ou isto ou falsificaram a fé por conveniência. No mais, talvez possa dizer que eles não eram ignorantes em muitos aspectos.

– Caramba! Você não tem uma visão muito condescendente das religiões.

– Não generalize. Meu principal quesito é com o cristianismo instituído. Tenho visto os distúrbios psíquicos que uma formação do tipo cristã pode gerar, mais criticamente no que tange ao sexo.

– Sei disso. Já li Reich e fiquei impressionado.

– Então, deve conhecer a comparação que ele faz entre cristianismo e marxismo.

– Não. Isso não.

– Pois bem, ele diz que nunca houve um cristianismo instituído, da mesma forma que nunca houve um regime político marxista de fato.

– Sei que na prática política o marxismo veio a ser leninismo, stalinismo e outros ismos. Mas e quanto ao cristianismo, qual foi seu ismo na prática?

– Paulismo. Reich diz que Paulo está para Jesus assim como Stálin está para Marx. Talvez não tanto, prefiro Lênin nessa comparação. Os Stálins do cristianismo vieram depois.

– Sei, Paulo. Por que não desconfiei dele? Afinal não foi o próprio que peitou a igreja de Jerusalém, suplantando até a autoridade de Tiago, apóstolo e irmão de Jesus? Parece que as doutrinas essenciais que fundam a ortodoxia católica foram inclusões paulinas, pois destoam dos ensinamentos contidos em muitos dos escritos não canônicos da época, mesmo no novo testamento há trechos divergentes.

– Talvez exagere; mas, para mim, Paulo criou uma religião se valendo de uma figura carismática, incentivou um culto personalístico e sobre ele sistematizou um movimento populista, aos moldes de certas linhas políticas atuais como os peronistas, getulistas e – por que não? – brizolistas.

– Um oportunista, você quer dizer. Paulo era um oportunista com uma queda pela politicagem. O conceito que faz dele não é nada lisonjeiro.

– Pelo contrário, tenho por ele um alto conceito. Suas qualidades fariam o sucesso de qualquer homem de negócios moderno. Além de possuir um senso político apurado, Paulo era um marqueteiro de mão cheia e um excelente administrador. Atento às tendências do mercado, soube vender seu produto e estruturar bem sua firma. Foi um homem à frente de seu tempo, precursor dos conceitos ministrados nos modernos M.B.A.’s e fundador de uma empresa tão sólida que sobrevive até hoje. Com um currículo como esse, realmente invejável, seria na atualidade um executivo de renome e disputadíssimo, o C.E.O. dos sonhos de qualquer multinacional.

– Idéias sacrílegas, essas as suas, rapaz. A igreja como um grande conglomerado internacional. Isto pouca gente gostaria de aceitar. Entraria em conflito com o ideal de despojamento dos bens materiais tão propalado em sua história.

– Não é segredo que a igreja deteve por muito tempo o poder financeiro no mundo ocidental e hoje ainda acumula bastante riqueza. Talvez a queda do império romano a tenha beneficiado, e muito, neste setor. Especulo até uma provável conspiração de seus dirigentes para precipitar os eventos, no interesse de obter uma hegemonia política e financeira, além da religiosa que já gozavam. Desde então, o poder mundano se confundiu com o poder secular exercido pelo clero, as monarquias pós-romanas não passavam de uma extensão do poder eclesiástico. Uma só vez antes da revolução industrial isto esteve em vias de ser modificado. Uma ameaça que se iniciou afetando precisamente a supremacia financeira do clericato. Uma força antagônica gerada dentro da própria instituição, um inimigo íntimo demais, uma cria que adquiriu uma autonomia perigosa e conhecimentos não previstos. Mas, antecipando-se ao cumprimento dos riscos anunciados, essa mão alheia foi impiedosa extirpada pelos membros que se mantiveram fiéis ao corpo.

– Os templários... Acusações insustentáveis, penas excessivamente severas, apropriações indébitas, um julgamento vergonhoso até para a época.

– Você vê: uma empresa com um departamento jurídico capaz dos maiores milagres e com capital de giro suficiente para vencer qualquer demanda.

– E você ainda os chama de burros...

– A um nível imediato eles realmente não são nada burros. Mas quem disse que é o fabricante de cigarros que deve ser burro?

– Ah, esta é ótima: A foto de um homem atlético, ao lado a tarja do ministério da saúde; o cigarro deixa você sem fôlego nenhum. Ou ainda melhor: o rosto de uma linda mulher e os dizeres: o cigarro provoca mau hálito e câncer na boca.

– As tarjas já poderiam ser: o ministério da saúde adverte: os fumantes são, sem duvida, umas bestas quadradas.

– Oh, não seja tão cruel. Afinal é um vício difícil de largar.

– Também é um vício difícil de obter. Pouco fumantes não acharam o início desagradável. É preciso uma boa dose de insistência para tolerar os engasgos e irritações das primeiras tragadas. Além disso, por mais força de vontade que exija parar de fumar, não vejo muita inteligência em achar que a vida não valha a pena o esforço, trocar sua plena fruição por um prazer imediato e uma fuga cômoda de um doloroso período de abstinência, para mim, é uma burrice sem tamanho.

– Para muitos jovens essa é uma questão de rebeldia, julgam demonstrar personalidade e independência quando contestam, confrontam e desobedecem qualquer autoridade constituída. Através do gesto de ostentar um cigarro querem transmitir que são livres e que não se submetem ao sistema.

– E ainda serve como bandeira na militância contra a chamada ditadura do politicamente correto.

– É, isso também.

– Mas é tudo besteira. Ser sempre “do contra” é uma atitude tão imbecil quanto a obediência cega. O fato de concordar em alguns pontos não quer dizer que compactue com o restante de uma ideologia. Às vezes, fazer o que quero pode corresponder ao que querem eu faça. Se só por isso fizer o contrário, não estarei sendo independente ou autônomo; estarei, isto sim, obedecendo a um comando invertido. Exercer uma autêntica liberdade é realizar um ato volitivo mesmo que, eventualmente, ele pareça uma ação submissa.

– Mas você há de convir que essa onda do politicamente correto já beira ao ridículo em alguns setores.

– Olha, não me entenda mal. Não tenho nenhuma queda por uma vertente em particular. Apenas critico a adoção unilateral de uma postura uniforme. Não são poucas as coisas ditas politicamente correta que me irritam profundamente. Todo esse melindre, por exemplo, no tratamento das palavras é de uma sandice vexatória. O preconceito não se aloja no vocabulário usado, mas na intenção de quem o usa. Posso ser extremamente preconceituoso valendo-me de palavras como soropositivo, gay, raça negra, afro-brasileiro, homossexualidade e etc.. E posso me derreter de amores publicamente por uma crioulinha, ser fã incondicional de um cantor de rock bicha ou me manter amigo até o fim de um aidético. As palavras não são pejorativas ou ofensivas em si mesmas, é o tom de quem as pronuncia que transmite o menosprezo e o insulto.

– O que me espanta é a naturalidade simplória como tais ditames são propostos e aceitos, não importando quão rasas sejam suas justificativas. Veja o caso recente da implantação de quotas para negros em universidades e concursos públicos. Um tiro que, muito provavelmente, sairá pela culatra. No intuito de diminuir a exclusão racial, darão é ensejo para tiradas preconceituosas do tipo: “se não fossem as quotas, não estariam aqui”; “as quotas são um ato de caridade, os pobres coitados precisam de nossa ajuda”; “pelo menos eu passei por méritos próprios não me vali de quotas”.

– Os que defendem as chamadas “Ações Afirmativas” supõem que é a cara da sociedade, com negros ocupando poucos cargos de relevo, que gera o preconceito já na própria inocência das crianças. Julgam que elas, ao notarem esse estado de coisas, depreendem que as lacunas se devem a falta natural de talento das raças de cor escura. Assim, raciocinam que impondo uma mudança nos quadros sociais solapariam o preconceito em seu nascedouro. Mesmo fazendo um esforço para não criticar um raciocínio tão tortuoso, seriamos obrigados a alertar que os efeitos dessas medidas terminarão sendo totalmente adversos ao intencionado. Pois o regime de quotas, queiramos ou não, admitirá um contingente de negros menos preparados para os cargos e para o ensino superior; isto ao compararmos estes aos demais, negros inclusive, que passarão prescindindo dele. Logo, os candidatos favorecidos terão mais dificuldades, devido ao seu despreparo, para exercer suas funções no emprego ou acompanhar as disciplinas na universidade. Um despreparo que decorre da formação precária que todas as raças com baixa renda estão sujeitas. Agora, seguindo a argumentação proposta: essas limitações circunstanciais, surgidas do contraste de um ambiente artificialmente formado, poderão parecer limitações inerentes da raça aos olhos das “inocentes criancinhas”.

– E nem precisava tanto para perceber que tratando o sintoma não se cura a doença.

– Ou que é o preconceito que molda o aspecto da sociedade e não o contrário. É pena que certos movimentos raciais ainda tragam o ranço de teorias sociológicas muito rasteiras que adotam conceitos psicanalíticos sem os interpretar adequadamente. Aqui vemos uma confusão recorrente; entender a conscientização freudiana como um resgate de lembranças reprimidas de eventos factuais. Nossas emoções se apóiam em fantasias que são fortemente reais apenas em termos psicológicos. Não importa a carga traumática da qual são portadoras, as fantasias não evidenciam que qualquer acontecimento específico tenha de fato ocorrido. O afloramento desencadeado pela análise não pode ser tomado levianamente como uma prova testemunhal de uma experiência objetiva. Logo, não há como rastrear a formação das estruturas de caráter tentando estabelecer uma cronologia pura e simples da história concreta do indivíduo.

– É mesmo muito difícil aceitar que o preconceito seja uma convicção adquirida, a qual teve a sua gênese numa equivocada tentativa infantil para dar sentido a uma percepção da realidade social. O preconceito me parece mais um sentimento que se sobrepõe até mesmo à constatação racional do valor da pessoa, é uma repulsa totalmente vazia de motivo consistente.

– Em análise, nenhuma das justificativas se sustenta, o paciente reconhece sinceramente que nada tem contra o objeto de seu sentimento preconceituoso e até o admiraria não fosse sua raça ou qualquer outra coisa nesse sentido. A inteligência os leva a esse conflito e a situação os incomoda. Este é o inicio de um processo de amadurecimento emocional. Quando crescem pessoalmente e ficam satisfeitas consigo mesmas, o preconceito desaparece.

– Isso acontece com todos?

– Não. Como eu disse o primeiro passo é ser honesto e dar voz à inteligência. Contudo, a maioria tem uma burrice tão arraigada, que fazem ouvidos moucos aos próprios insights. O que tenho visto é uma relutância inaudita em deixar a inteligência vir à tona. É um fato desconcertante que haja esse reiterado padrão de recuo compulsivo, justo quando uma compreensão está prestes a ocorrer no trato psicanalítico. Este é um momento crítico na análise, há um recrudescimento das estratégias defensivas, uma regressão aos refúgios caracterológicos familiares, um agravamento do apego às convicções habituais. Os analisandos como que pressentem um perigo real e imediato e se agarram sofregamente às certezas que lhe foram recomendadas e que aprenderam a confiar, buscando nelas a mesma sensação de segurança da qual já tinham se acostumado. Se lograrem reproduzir o mesmo sentimento anterior de amparo e proteção, sucumbirão a um renitente estado de pura ignávia, um retraimento total para a estupidez acachapante, algo que interpõe um grave obstáculo ao progresso do tratamento e pode até decretar seu término sem os resultados pretendidos.

– Quer dizer: a burrice é como a concha do molusco para onde se contraem e se recolhem ao verem ameaçado o mundo confortável de auto-indulgência que construíram para si próprios.

– Não a concha do molusco, mas o buraco onde o avestruz esconde a cabeça e deixa o resto exposto. Analogicamente, a cabeça representa o poder intelectivo e é ele que enterram para excluir sua ingerência, neutralizam sua atividade negligenciando seu uso.

– Esta é a forma infantil de lidar com o medo. Estarão bem se o receio for infundado e nada de efetivo ocorrer.

– Mas nossas mais caras estruturas de defesa são assimiladas na infância, nossos mais reconfortantes abrigos foram herdados durante a formação de nossas personalidades. E nossas vidas propositalmente sedentárias fazem com que poucas vezes sejam postos a prova. A noção de ter a vida sob controle é ilusória, depositamos nossa pretensa autoconfiança em vãs garantias.

– E quando toda essa expectativa não se cumpre...

– Temos um ser humano totalmente desestabilizado, perdido num ambiente inóspito e caótico, onde deveria haver um mundo amigável e previsível. Traído em seus mais profundos anelos, se amua e se deprime; invadem-lhe sentimentos intensos de que Deus o abandonou à própria sorte e de ter sofrido uma perda irrecuperável. A coragem para dar um passo em qualquer direção se extinguiu, está paralisado em seu ânimo para a vida, não consegue ir adiante. Então, ele adoeceu e pode ser encaminhado para nós, os médicos da alma.

– E tem remédio, doutor?

– Há uma corrente que preconiza restituir ao paciente a confiança perdida nos velhos estratagemas, re-enquadrá-lo ao cotidiano que estava habituado, readaptá-lo à sociedade, fazendo dele novamente um cidadão útil e produtivo.

– Certamente, você não endossa esse receituário.

– Advogo da teoria de que o ser humano tem potencial para ir além disso. Mas não conseguirei nada sem antes despertar o desejo do paciente para empreender uma jornada difícil. Dou os primeiros toques, se ele tomar gosto pela aventura, vou em frente; senão devolvo-o à sua vidinha tranqüila e sossegada.

– Pensei que você fosse um idealista e quisesse mudar o mundo pela psicologia.

– E sou. Mas também sou realista e não exagero. Se radicalizasse, haveria uma debandada geral de meu consultório. Os pacientes que não querem mudar, mas só calar uma vozinha incômoda, são o ganha-pão de todos os psicanalistas. Muitas vezes, nem mesmo o sussurro impertinente existe, eles pagam simplesmente para ter alguém que ouça suas lamúrias.

– E até isso você aceita?

– E por que não? Mesmo que não seja integralmente, pelo menos algum serviço de conforto íntimo presto a essa gente. Olha, a psicanálise rigorosa apresenta ao paciente e o faz conviver com alguém que raramente é simpático ou agradável.

– O psicanalista.

– Não. Ele mesmo, o próprio paciente.

– O caminho do autoconhecimento.

– Mas ao contrário das auto-ajudas, a psicanálise despe a pessoa de suas vestes sociais. Tenho que concordar que não é uma cena nada bonita de se ver. Portanto, se ele tem ojeriza ao espelho, eu só lhe mostro suas fotos com as melhores poses. Não sou eu quem vai lhe negar a opção pela burrice, este é um direito que lhe é sagrado.

– Foi essa, então, a escolha que Abraão fez?

– Prevalecendo a tese da fé previa, sim. Em algum momento antes dos fatos narrados, ele optou por ser burro para ter fé.

– Logo, ele tomou uma decisão e por esse ato podemos responsabilizá-lo.

– Certo e a partir daí se tornou crente, burro e irresponsável.

– De certo modo podemos dizer que o intuito de Iavé era ver até onde iria a burrice de Abraão.

– E descobriu que a burrice pode ter limites bastante elásticos.

– Mas como ele poderia se equipar com uma estupidez tão grande? Você fala como se existisse um mecanismo psicológico que pudesse ser posto em ação para nos emburrecer.

– E existe. Chama-se repressão. E ela já estava sendo aludida nos meus comentários precedente.

– Conheço a repressão sexual em Freud, mas esta como se encaixa na teoria psicanalítica?

– Gosto de ver o progresso da psicanálise esboçado através da evolução do conceito de repressão fundamental em cada nova revisão da teoria. Assim temos a sexual começando com Freud. Em seguida, Adler introduz a repressão da individualidade e dela deriva a sexual. Jung, por sua vez, apresenta a repressão da religiosidade que possui as anteriores como conseqüência. Já Fromm julgava que o desejo de liberdade era reprimido mais fundamentalmente. Para Rank, reprimir o medo da morte era origem de toda negação. Em Klein, no entanto e correndo o risco de simplificar demais, vejo a repressão do brinquedo infantil como implemento dos recalques adultos. E, finalmente, minha humilde contribuição para o inventário psicanalítico. Ultrapassando as propostas onde se reprime meros conteúdos, lanço a hipótese de que, antes deles, há um processo psíquico reprimido; a inteligência humana. Todos os demais recalques decorrem da repressão da genialidade. Eis a tragédia humana; somos um contingente de gênios reprimidos, literalmente em termos analíticos.

– Todo mundo é um Einstein inconsciente.

– Einstein é café pequeno. Nele aflorou apenas um vislumbre do nosso potencial que foi banido para o inconsciente. Se todo ele emergisse, de uma só vez, seriamos como deuses.

– A burrice, portanto, é o vazio abissal deixado pela genialidade no consciente.

– Eu não me expressaria tão bem.

– Mas, não é meio ingênuo fazer da genialidade um constituinte essencial da natureza humana. Dizer que todo homem já nasce gênio soa um pouco bobo.

– Uma característica comum entre os judeus, e que os identifica, é a ausência de prepúcio. Isso nos permite supor que eles já nascem circuncidados ou que esta é uma peculiaridade étnica da anatomia desse povo?

– Claro que não. Porque sei que é uma intervenção cirúrgica ditada por norma religiosa.

– E se esse fato fosse um tabu nunca revelado aos de fora? A um médico estrangeiro, esta dificilmente seria a primeira hipótese para explicar a discrepância anatômica geral. Certamente não julgaria ser uma anomalia de qualquer forma, pois a encontraria em todas as famílias e em todas as gerações. Se não fosse um obstetra, os nascimentos lhe passariam despercebidos; os quais, de uma maneira ou de outra, seria proibido de assistir. Se indagasse a população sobre o assunto, seriam unânimes em responder que nunca fora diferente e que era a vontade de Deus.

– Com esse nível de informação, claro que uma conclusão em favor da naturalidade do fenômeno seria razoável. Mas isto só mostra que, em certas circunstâncias, há o risco de tomarmos como naturais aspectos artificialmente criados ou meramente contingentes. Contudo, será mesmo a genialidade uma aptidão inata do humano e sua falta uma deficiência, como a cegueira é da visão?

– É justo o que postulo. Será assim tão ingênuo postular um mundo de cegos ou, pelo menos, de míopes, onde o extraordinário é ter olhos satisfatoriamente funcionais?

– Se assim for, deve haver evidências de feitos geniais na vida de cada um antes que a repressão se efetive.

– E há. As pistas deixadas pelo nosso gênio esquecido se concentram num período breve de nossas vidas, quando somos extremamente produtivos em matéria de assimilação e aprendizado. Durante curto espaço de tempo, nos tornamos proficientes em manejar os símbolos complexos de nossas culturas, adquirimos fluência em uma língua a partir do nada e sem nenhum ensino sistematizado, ordenamos percepções caóticas em um todo coerente, refinamos o controle motor de intrincados sistemas mecânicos; enfim, construímos um ser humano munidos apenas de potencialidades diversas e dispersas. Música, informática, dança, acrobacia, tudo é muito mais fácil nesse estágio. Imaginação e criatividade são regra geral. É a fase em que encontramos os ápices de genialidade para, então, os perder na idade adulta. Pode parecer um clichê muito batido pela psicologia humanista: o paraíso desreprimido da infância; porém ele me dá ensejo para uma declaração mais bombástica. Deus não cria o homem, quem o cria é a criança.

– Em algum momento da infância, como Abraão, abdicamos da genialidade por uma segurança virtual?

– Melhorando um pouco mais: abdicamos da genialidade para conseguirmos acreditar piamente numa segurança virtual, exato como Abraão. E como Iavé o aliciou para que tomasse essa decisão, a criança é aliciada pelo adulto para fazer o mesmo.

– O adulto corrompe a inocência da criança?

– Eu não cairia num clichê tão fácil. Por mais inesperado que seja, a criança é menos inocente que o adulto, mais responsável que ele por seus atos. Ela ainda tem opção, não dispõe das certezas de seus pais. Não pode ser induzida, mas é vulnerável ao aliciamento bem conduzido.

– E não é a mesma coisa?

– Por certo que não. Não pense que o aliciamento é um engodo grosseiro, que se vale da burrice alheia; pelo contrário, ele conta com a inteligência para ligar as pontas soltas que propositalmente deixa em seu discurso. Sua abordagem não é direta, há o cuidado para nem mesmo ser implícito, apenas insinua o rumo a ser tomado, processa a indução por meios de atitudes vagas e dissimuladas, sugestiona as tendências apropriadas transmitindo sinais ambíguos. O bom aliciador envolve sua vítima mais com o silêncio que com a palavra, jamais é didático em suas exposições, nunca diz o bastante; procura ser reticente, obscuro e não conclusivo nos seus pontos de vista. Constrói para si uma personalidade indefinível e um comportamento dúbio, evitando denunciar qualquer traço que identifique seus interesses. Assim, não declara abertamente suas idéias e propósitos, o fim que tenciona é deixado apenas sugerido. Seu ataque é suave e gentil, o germe da persuasão ele coloca justo no ponto onde cala e não se posiciona.

O aliciamento é uma arte sutil que consiste não em convencer, mas em deixar mais atraente para o aliciado a escolha que convém ao aliciador, desviando o foco do conteúdo para características extrínsecas que sejam convidativas, realçando qualidades acessórias que se apresentem mais apetecíveis e agregando valores delegados por sistemas ideológicos que lhe sejam favoráveis. E tanto mais poderá cativar a presa quanto maior forem as vantagens afetivas que conseguir fazê-la antecipar, no que concerne à satisfação de suas carências prévias. Das quais o agente aliciante garante a existência ao preparar, de ante mão e com cuidado, um meio emocional propício para que surjam e se desenvolvam, onde possam ser estimuladas e vistas como reivindicações justificáveis do ser humano. Ao atingir as condições ideais, essas pequenas ânsias de saciação se convertem nos sentimentos viciosos que conhecemos como vaidade, narcisismo, inveja, frustração, insegurança, preguiça, covardia, despeito, lascívia, gana, orgulho, preconceito e assim por diante.

– Lascívia? Um sentimento vicioso? Pensei que você fosse um defensor da liberdade sexual ampla, geral e irrestrita.

– Sei que a palavra carrega certa pecha moralista. Contudo, foi a melhor denominação que encontrei para os extravasamentos incontinentes da libido por canais não apropriados. Aquele a quem chamo de lascivo é acometido de excitamentos tão intensos que lhe chegam a ser dolorosos, todos os seus músculos são tomados por um estado de estresse febril. A descarga de toda essa excitação não flui naturalmente, há estrangulamentos nas vias espontâneas de fruição, então ocorrem desvios e o escoamento se faz através de fantasias desesperadas e distorcidas, cujo foco se direciona para objetos libidinais inadequados ou que ainda não estão amadurecidos para desempenhar tais funções; muitas vezes, estes são obrigados a assumir um papel sexual com exigências opressivas e degradantes. O lúbrico sente uma urgência que só é capaz de saciar em excêntricas situações de sexo; freneticamente busca gratificação sensual encenando teatrais e extravagantes fantasias eróticas. Algumas destas tão extremadas que chegam a ser agressivas e, com facilidade, degeneram para a pura violação e sevícia.

– Este é o resultado de uma vida sensual em excesso?

– O engraçado, meu amigo, é que não é não. Contrariando essa concepção bastante comum, posso lhe dizer que esse severo distúrbio na distribuição da libido é mais freqüentemente encontrado como sintoma de uma prolongada abstinência, mesmo que voluntária, e não de uma ostensiva e licenciosa prática sexual. Estamos falando aqui de uma pulsão cumulativa no sentido mais clínico do termo, uma patologia originada pelo não exercício de uma função fisiológica reguladora.

– Mas esses indivíduos devem também ter perdido a capacidade de sublimar.

– Muito pelo contrário, via de regra, são usuários compulsivos e dependentes crônicos de esquemas compensatórios de sublimação; nos quais se garantem cegamente, como único suporte, para manter e estruturar toda a sanidade de suas vidas psíquicas. E tudo corre razoavelmente bem, durante um bom tempo, enquanto só precisam lidar com os efeitos colaterais dos recalques. No entanto, quando deixam de apenas reprimir e passam também a represar pura e simplesmente, o sistema de compensações começa a não dar conta da nova demanda e revela-se ser um sucedâneo muito pouco eficiente da atividade orgânica negligenciada. O alívio costumeiro vai contentando cada vez menos e, por conseqüência, sucessivas soluções sublimatórias vão sendo produzidas no afã de mitigar a pressão crescente. Todavia, uma após outra vão fracassando neste intento, à medida que evoluem, temerariamente, para formas cada vez mais rebuscadas e complexas. E assim prosseguem até atingirem o seu limite e se perderem em desvairadas e perturbadoras versões de si mesmas, descambando, por fim, para a consecução de terríveis e grotescas paródias do ato sexual.

– Eis aí a motivação de muitos dos crimes sexuais.

– E o mais trágico é que há uma tendência abominável entre esses criminosos de incluírem crianças em seus sórdidos enredos pornográficos.

– Sei... Haja vista o escândalo dos padres americanos.

– E não só. O que nos leva a encontrar os principais grupos de risco da lascívia entre os menos suspeitos membros da sociedade: religiosos e tímidos. Não santos castos, amigo, mas deformados sexuais são o que mais prontamente o celibato produz.

– Daí se depreende a necessidade profilática da mais antiga profissão do mundo.

– Em outras culturas, ela é considerada um serviço de interesse público e seus profissionais são respeitados e desfrutam de uma alta reputação. Não é raro encontrarmos povos que até os veneram como deidades em seus panteões.

– Entendo até o combate à exploração extorsiva que se faz desta atividade, mas me escapa de onde vem essa hipocrisia com a qual nossa sociedade marginaliza e condena seus praticantes.

– Porque, pelo menos em parte, a prostituição inviabiliza o processo de desenvolvimento em larga escala de lascivos.

– Qual o interesse em desenvolvê-los se há o risco muito grande de, no fim, tornarem-se criminosos sexuais?

– É por causa dos ovos.

– Como assim? Não saquei.

– Você não conhece muitas piadas, não é mesmo?

– Ouço muitas, mas dificilmente as guardo.

– Bom, o negócio dos ovos vem de uma piada. É de uma família na qual havia um louco que pensava ser uma galinha. E apesar de seu estado deplorável, nenhum de seus familiares jamais demonstrou qualquer intenção de levá-lo a um psiquiatra. Quando, finalmente, alguém teve a coragem de indagar o motivo de procederem assim; responderam singelamente: “não podemos nos dar o luxo de curá-lo, precisamos muito dos ovos”.

– E quais são os ovos que os lascivos põem e que a sociedade tanto necessita?

– O ardor sublimatório. O subproduto destilado de sua ânsia de lenimento sexual. Algo como as camadas sucessivas de calcário com que a ostra envolve o grão de areia alojado em sua tenra e sensível mucosa. E, nessa continua tentativa de conter a irritante aflição, vai moldando a beleza e o valor da pérola, propriedades imperceptíveis e sem qualquer serventia para a própria ostra.

– Você é o rei das analogias.

– E esse contexto é particularmente rico nelas. Quer mais uma: “foie gras”.

– Saquei: a doença, provocada ou não, tornam o ganso e a ostra mais valiosos, tudo bem; contudo, como a sociedade se beneficia desses ovos, pérolas e patês?

– Por meio deles obtém os recursos necessários para erigir e fomentar suas mais caras e tradicionais instituições. Tal ganho colateral vem na forma dos pesados investimentos ideológicos e afetivos que o avanço da patologia vai concentrando sobre a simbólica redentora da sociedade. O direcionamento apropriado desses fluxos substanciais de sublimação se constitui a fonte do poder que emana de nossas estruturas sociais e políticas, as quais incentivam e privilegiam formas burocráticas de tratar a vida.

– Atrás de um puritanismo de fachada, está uma inconfessável manipulação dos sintomas extravagantes de indivíduos sexualmente problemáticos, transformando-os em combustíveis inconscientes que mantêm funcionando a máquina social! É isso que você quer dizer?

– Mais que isso. Eles não são apenas o combustível inconsciente. Esse papel é reservado à massa dita normal, o cidadão comum e anônimo. Estes apesar de praticar sexo com certa liberdade, também vivem em abstinência; copulam, mas a repressão os mantém longe do orgasmo. Em mais uma analogia: não se privam de comer, todavia ficam restritos aos “fast foods” da vida. As conseqüências de uma nutrição tão pobre não se manifestam de imediato, afinal obesidade e declínio da capacidade física não prejudicam um estilo de vida sedentário, ainda mais quando toda a concepção de saciedade que cultivam se resume à plenitude gástrica, contentamento que os sustêm pelo menos até a próxima refeição.

– Ei! Essa seria uma situação insustentável, ninguém conseguiria manter esse tipo de conduta por muito tempo.

– E não consegue mesmo. Mas sempre se pode responsabilizar um vírus ou, quando dura o suficiente, no geral, dá para culpar a idade pelo que veio sendo provocado. A velhice, e seus sintomas, deixa de ser conseqüência do comportamento pretérito para tornar-se a causa natural dos infortúnios presentes.

– O conceito de velhice deriva do mesmo erro de estabelecer a vida útil de um aparelho apenas conhecendo seu uso em condições adversas e não recomendada pelo fabricante. Aí, já estou pegando o jeito das analogias!

– Infelizmente, não viemos com o manual de uso. Temos tentado reconstituí-lo observando os diversos aspectos de nosso funcionamento. Mas enfrentamos muita resistência por parte dos que consideram ofensivo tratar, em qualquer nível, o ser humano como um mecanismo. Idealizam-nos como uma estrutura imaterial, imune ao determinismo dos agentes físicos, subordinada apenas ao fatalismo de desígnios divinos; não importando a eficácia dos processos científicos, no final, sempre prevaleceriam determinadas leis espirituais.

– “Minha hora é Deus quem sabe”. “Estava escrito, era meu destino, nada podia ser feito a respeito”. Quem disse que estamos vivendo uma era de excessos racionalistas? A revolução científica nunca ultrapassou os laboratórios, não se constituiu em filosofia para ser adotada pela humanidade, convivemos com os seus subprodutos sem nos darmos conta das implicações ideológicas de suas existências. Muitos não admitirão, mas assimilamos nossa tecnologia de um modo ainda decididamente mágico, nada diferente da mentalidade que reinava na idade média.

– Concordo, mas não nos desviemos: nosso foco era o lúbrico e qual sua importância nos esquemas sociais.

– Bom, se ele não engrossa fileiras nas ações ordinárias da vida social, onde realmente se encaixa nesse super organismo e qual a sua função nele que não o deixa se confundir com a massa?

– Os lascivos são a vanguarda, os que tomam a causa social como missão e levam adiante, com entusiasmo, a sua mensagem propiciatória. São os militantes mais motivados no esforço de conversão e os defensores mais ferrenhos do regime de convivência adotado pela sociedade, convictos da suprema necessidade de estender seu jugo consolador sobre todos e cada um. Reverenciam os emblemas sociais com tal zelo que se tornam fanáticos. Em todo grupo humano se apresentarão como os membros mais ativos e abnegados no desempenho de respeitáveis atribuições comunitárias. Resumindo: formam a milícia fervorosa, fiel e dedicada, combaterão até a morte para confirmar a si mesmos as suas crenças.

– Presos como o macaco que meteu a mão na cumbuca, mas não larga o que encontrou lá dentro.

– Você precisa ver que eles foram levados a investir alto nas certezas oferecidas, construíram todo o patrimônio existencial de suas vidas sobre elas. Portanto, justifica tomarem para si a responsabilidade de salvaguardar os investimentos já feitos e irem a luta para promover seus papéis.

– Bela metáfora econômica: pode-se intercambiar livremente as conotações de títulos e papéis, aludindo tanto as suas acepções sociais quanto as financeiras.

– Dá para ir além. O dinheiro é uma boa metáfora para a energia a qual chamamos libido. E energia, em sua concepção mais geral, é um termo que você está em melhores condições para definir que eu.

– Ele está muito maltratado pelo uso, mas sua conceituação dentro da física não tem nada de misterioso; é apenas a mensuração da capacidade de realizar trabalho.

– Perfeito! E capacidade não significa nada se não for posta em prática. Uma bateria é uma caixa absolutamente inútil se não for ligada a algum aparelho. A energia não é um fim em si mesma, não passa de promessas de ações ainda não concretizadas, sua única razão de ser é consumir-se na dinâmica do movimento ou na explosão do impacto. A energia é tão somente a ponte de ligação entre uma virtualidade e uma consecução; não faz sentido acumulá-la sem se propor a gastá-la de alguma forma.

– E a metáfora é o fato de que o dinheiro também ter sido feito para gastar?

– Mas, de um modo mais fundamental ainda, o que me interessa é a constatação dele ser também um simples intermediário; a escala não essencial entre dois bens, o interregno precário entre dois haveres, o interceptador no tráfego das trocas. O que ele representa não é mais que promessas de aquisições futuras; uma posse mantida em suspensão, sem se concretizar. Poucas atitudes são tão temerárias quanto considerar o acúmulo de numerários como um patrimônio auto-sustentável. O dinheiro é, em suma, uma riqueza virtual, a medida do poder de compra que nos é concedida por um sistema financeiro; logo todo o valor que possui não é intrínseco, mas meramente delegado e circunstancial. Enquanto não o levarmos a atingir o propósito único de sua existência, que é se converter em proveito pessoal, estará sujeito às instabilidades das políticas de governo alheias à nossa vontade.

– Então, viva o consumismo!

– Ei, isso é que não! Eu disse proveito próprio, pessoal, usar o dinheiro para aquisição de bens que sejam de nosso interesse. Consumismo é outra coisa bem diferente. Nele, o que se compra é o menos importante, o prazer é extraído do próprio ato perdulário; a emissão de cheques e dinheiro é como um arremedo de ejaculação masturbatória.

– Que imagem mais chula!

– É para ser chula mesmo. O consumismo é uma das sublimações involuntárias do dinheiro, enquanto a ejaculação é uma das sublimações involuntárias da libido. O valor social de uma aquisição é priorizado em detrimento do bem pessoal que possa trazer. Da mesma forma como o automatismo provedor da pequena dose de endorfina assumiu o papel de orgasmo para a quase unanimidade dos homens.

– Ah, sei: o hambúrguer dando uma de refeição. O que não entendo é como essa troca desvantajosa pode ser aceita assim tão impassivelmente.

– A maioria nem imagina que esteja havendo uma troca, não vislumbram nada que possam desejar além disso. Os que têm alguma noção acreditam não haver nenhum motivo para alarde, afinal permanecem “vivos e bem”, logo não deve ser nada de muito grave. Outros ainda, como você mesmo disse, se fiam mais na providência divina; não importa o que façam, nada acontece se não for por vontade de deus, portanto basta-lhes a fé para se sentirem a salvo de todo mal. São todos fumantes do tabaco sublimatório, usuários convictos demais para assimilar qualquer campanha de alerta.

– Quer dizer; os bons restaurantes existem, mas estão mal divulgados, quase ninguém sabe que existem. Os que têm algum conhecimento se dividem em dois grupos: uns acham os preços proibitivos e supõem que a diferença não justificaria o gasto, outros preferem a comodidade e a rapidez, não querem parar o que estão fazendo, pois não têm tempo a perder. Assim perdem toda oportunidade de provarem um bom alimento e continuam vivendo sem nenhum termo de comparação.

– Além do mais, apreciar boas iguarias não é algo que se consegue logo na primeira vez, a degustação é uma arte que precisa ser cultivada, não é um prazer imediato e fácil. Desenvolver gosto e paladar requer trabalho que poucos querem ou acham necessário. O hambúrguer está mais à mão e ainda possui outros valores agregados que a imagem publicitária da lanchonete cuida em evocar. Com a ejaculação acontece a mesma coisa; o orgasmo é comparativamente muitíssimo mais trabalhoso, ele exige o desenvolvimento e a desenvoltura de diversos tipos de sensibilidades e aptidões físicas, não está condicionado à simples reprodução de situações de sexo, por mais requintadas e estapafúrdias que sejam. E ainda tem um agravante: a ejaculação é compulsiva e compulsória para os homens, não ejacular é uma tarefa hercúlea. Mesmo que você se disponha ao esforço, terá que encarar um tour de force de tentativas e fracassos. É uma frustração só, meu amigo, tão exasperante que pode facilmente lhe convencer da impossibilidade de tal intento. Há, inclusive, uma controvérsia sobre se adviriam ou não efeitos adversos desse procedimento e de que toda essa dificuldade em detê-la não seria uma prova do caráter necessário da ejaculação. Em questões como estas temos sempre o cigarro para construir uma dúvida razoável.

– Então, nós, os homens, somos uma espécie fadada a ejacular antes de atingir o orgasmo. Não conseguimos resistir à tentação de passar no drive thru quando estamos a caminho do restaurante.

– E quem poderá jantar estando empanturrado de hambúrguer. A ejaculação não funciona só como sucedâneo, ela também estanca imediatamente o processo cumulativo de estímulos erógenos, impedindo que o fluxo libidinal prossiga em seu curso. No fim das contas, a ejaculação se constitui num entrave decisivo para a consecução do orgasmo, um anticlímax do sexo.

– Logo, a ejaculação é um legítimo “coitus interruptus” ou mais apropriadamente “orgamus interruptus”.

– Mas ela não é empecilho apenas para o orgasmo masculino, as mulheres também são privadas de seu usufruto por causa dela. O homem, em sua imensa maioria, é incapaz de conter o afã ejaculatório por tempo suficiente para dar à mulher a oportunidade de realmente alcançar seu clímax. Por isso, elas não chegam nem perto de experimentar tudo que podem em matéria de orgasmo. E, diferente dos machos, as fêmeas humanas não possuem sucedâneo de orgasmo, para elas não há nenhum paliativo enganoso para a frustrante experiência de sexo sem recompensa orgástica. E quando expõem a insatisfação e o desapontamento que sentem, logo são taxadas de frígidas; o desempenho masculino poucas vezes é posta em questão.

– Mas quando têm a sorte de encontrar alguém um pouco acima da média, obtém algo que suplanta em muito o insosso prazer masculino. Múltiplos, prolongados, patamares seriados; verdadeiras montanhas russas do gozo. Coisas com as quais nós homens só podemos sonhar.

– Isso porque tudo que nos foi dado a conhecer é esse arremedo mixuruca de orgasmo, que só serve para nos engabelar. A ejaculação é pouco exigente, mas é pobre e rápida demais em termos de prazer. Tive um analisando que revelou de forma contundente sua revolta, quanto ao que ele dizia ser uma grande injustiça. Relatou-me que certa vez teve uma súbita irritação com sua parceira enquanto transavam. Ela ainda continuava a gozar mesmo depois dele já ter ejaculado e pedia sofregamente “não pare, não pare!”, enquanto ele não conseguia sentir mais nada. Então, achando aquilo um tremendo egoísmo por parte dela, a esbofeteou gritando: “E eu... E eu... Como é que eu fico?”.

– Fica na mão.

– Literalmente! Se não quiser dar a sua namorada o que você não pode ter por pura incompetência machista. Foi o que disse a ele. Decididamente não sou um rogeriano. Mas ele expressou um sentimento universal e inconsciente nos homens de sociedades como a nossa. Embora a inveja do pênis não possa ser menosprezada dentro da teoria freudiana, creio que Freud deixou escapar a contraparte masculina e fulcro instaurador de uma nova e fecunda visão da sexualidade humana. Estou me referindo à inveja do orgasmo, a meu ver o ponto nevrálgico do comportamento sexual humano. Ele explica muita coisa, a começar pela misoginia latente ou explícita em várias culturas, incluindo destacadamente a nossa.

– É o mesmo velho sentimento, mesclado a um pouco de despeito, que nos torna incapazes de suportar o fato de outros possuírem o que não temos e, assim, desejamos que percam ou sejam impedidos de usufruir deles de modo a amenizar a visão de nosso próprio fracasso.

– Mas não só, talvez possamos desentranhar motivações mais inquietantes derivadas de nossa vida inconsciente. De qualquer forma, o orgasmo não é uma prerrogativa exclusivamente feminina, não há nenhuma limitação orgânica que impossibilite o homem de ter fruições tão intensas quanto as experimentadas pelas mulheres. A ejaculação não é um problema em si mesmo, ela pode ser controlada e desempenhar a função que lhe cabe quando for preciso procriar. O fator realmente problemático a lhes pesar desfavoravelmente neste aspecto é a necessidade de superar a priori certos condicionamentos muito arraigados; os quais, por alguma razão inerente à índole das fêmeas, surtem pouco efeito sobre o dito sexo mais fraco.

– Então, temos algo muito importante a aprender com as mulheres.

– Fomos levados aceitar dogmaticamente que o dom mais precioso da mulher, e onde reside todo seu mistério e poder, é a maternidade. Mas a maternidade que nos apresentam é a pura, sagrada e virginal dos cultos marianos, um poder de concepção desincorporado da sexualidade e, portanto, ironicamente estéril. A feminilidade desvinculada do sexo padece de morbidez. Maria é um simulacro sem os atributos essenciais da deusa mãe, uma premeditada imagem do papel do feminino na natureza. Esse tipo de concessão de valor para as mulheres dentro da sociedade denuncia sua tendência eminentemente patriarcal. Enquanto não nos aproximarmos delas com o devido respeito e entendermos o significado da sua presença entre nós, estaremos presos a um destino desastroso. Maltratamos a natureza porque antes fazemos o mesmo com nossas companheiras. Somos arrogantes demais para ver que o fruto que desejam compartilhar conosco é o orgasmo. É um fruto que elas sabem como se planta, mas que sozinhas, sem a nossa cumplicidade, não conseguem cultivar.

– Eva é, pois, o arquétipo estigmatizado da mulher, a portadora do fruto proibido.

– Sim, portadora do fruto proibido e este é o fruto do conhecimento do bem e do mal. A proibição apenas sobre ele recaía. O fruto da vida, que é o orgasmo, sempre esteve liberado, mas só veio a se tornar atraente e apetitoso depois que o fruto do conhecimento foi deglutido. Assim nunca houve a necessidade de mais que uma proclamação de ilegalidade, apesar de que o intento disfarçado era mesmo afastar o homem da arvore da vida. Tanto é que como último recurso foram expulsos do paraíso, não por castigo simplesmente, mas para evitar que também provassem do fruto da vida e vivessem para sempre ou não pudessem nunca viver intensamente a eternidade de cada momento.

– Isso reabilita totalmente a serpente.

– Ela nunca precisou ser reabilitada. No gênesis, não há nada que a desabone, até mesmo Iavé confirma as palavras que ela disse à Eva.

– Mas isso é totalmente herético, indisfarçavelmente gnóstico.

– Se é, então a bíblia é um texto de conteúdos totalmente heréticos, devia ser queimada pela igreja.

– E, o que também não deixa de ser engraçado, de acordo com um de seus concílios, deus deveria ser excomungado.

– E sendo engraçado, apesar de algumas vezes também ser trágico, nem ela ri de si mesma, nem deixa que riam dela.

– O que, no mínimo, não é simpático.

– Nem um pouco. Mas por que viemos parar nesse vespeiro?

– Falávamos do consumismo como uma das sublimações do dinheiro.

– E, definitivamente, não é a única. Há diversas outras formas de desviar nosso dinheiro para investimentos desconhecidos, totalmente a nossa revelia.

– Impostos.

– Quem ainda acredita que o governo usa nosso dinheiro da forma que diz ou promete? Ninguém mais pode sustentar que a corrupção seja só calúnia da oposição. O desvio de valores públicos é uma acintosa realidade. Talvez até financie empreendimentos nocivos à população e promova ainda mais a acumulação de riquezas pela minoria que menos produz e contribui. Em suma, obrigam-nos a investir em prol de nosso próprio prejuízo. Contudo, há outros meios além dos impostos de deixarmos nosso dinheiro a mercê de direcionamentos alheios à nossa vontade. E estes são piores, pois, por serem procedimentos tão corriqueiros, tão inocentes, jamais chegamos a levantar qualquer suspeita a respeito deles. São as contas correntes e as chamadas carteiras de investimento. Através desses serviços confiamos aos bancos a custódia de nosso numerário e lhes franqueamos o direito de dispor dele como bem lhes aprouver, enquanto se responsabilizarem por sua guarda ou seu rendimento.

– Saquei! Podemos ser militantes de causas ecológicas e estarmos, sem saber, investindo nosso rico dinheirinho em empresas poluidoras ou em atividades nocivas ao meio ambiente.

– Os filiados ao green peace podem estar deitando na frente do caminhão de lixo tóxico que ajudaram a comprar.

– Deixamos que nosso dinheiro seja usado para causar prejuízo a nós mesmo.

– Assim como doamos nossa energia vital para ser usada contra nossa própria saúde e vitalidade.





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