OS “LIMITES” DA CIÊNCIA


Acho engraçado o modo como os religiosos e alguns filósofos, ditos espiritualistas ou metafísicos, pedem condições de igualdade com a ciência. Dizem que a ciência não pode se considerar “o único bastião da realidade" ou da verdade e que precisa reconhecer seus limites. Recomendações louváveis, mas que são anacrônicas ou dirigidas ao destinatário errado. Hoje, definir a ciência como um repositório de verdades, representações precisas da realidade e que não admite seus limites não passa de cientificismo. Essa concepção fomentada em relação à ciência é mais positivista que científica e foi abandonada como postura filosófica da ciência desde o início do século passado.

É curioso notar que o positivismo tem tantos pontos em comum com as religiões que Comte se utilizou dele para fundar a sua própria. Portanto, não há nenhum problema para a ciência admitir que não é "o único bastião da realidade" e que tem seus limites. Isso não lhe afeta, a verdade não é um conceito que lhe faça falta; aliás, até lhe atrapalha. Agora, será que os religiosos e filósofos metafísicos estarão dispostos a agir da mesma forma? Desejarão ou mesmo poderão abandonar a convicção que os mantêm de que são “o único bastião da realidade", que são "o caminho, a verdade e a vida" e que seu método de conhecimento é ilimitado, já que provém de fonte onisciente? Poderia qualquer uma dessas religiões ou metafísicas de massa renunciar à pregação da verdade? Eles exigem que a ciência admita o que eles mesmos nunca tiveram a intenção de admitir. E nunca terão, pois quando abrirem mão de possuir a verdade revelada diretamente da divindade, não poderão mais segurar seus fiéis. Então, falam das limitações da ciência como se houvesse um conhecimento menos limitado que o dela; aquele que defendem, logicamente.

Também apelam para que sejamos céticos quanto ao que é dito cientifico. Tudo bem, nada demais; ser cético já é uma recomendação recorrente e útil para todo bom cientista ou livre pensador. O ceticismo não precisa ser incorporado à ciência, ele já é a base metodológica dela. Dizer para um cientista ser cético é o mesmo que dizer a um profissional que faça bem o seu trabalho. Chega a ser algo pouco educado para se falar. Logo, não haverá qualquer resistência de nossa parte em assumir uma postura cética, não temos nada a perder com isso, só a ganhar. Contudo, enquanto exortam para que sejamos cético em relação a ciência; eles se sentem no direito inalienável de usar o recurso da fé quando e onde bem quiserem. Querem que a lógica e a evidência pautem nossos pensamentos, mas quando esses requisitos não lhes favorece, acham perfeitamente legítimo recorrer aos seus dogmas e fechar o assunto como questão de crença e sentimento religioso.

Sim, os religiosos e metafísicos desejam um dialogo com os céticos, mas tem que ser nos termos deles; onde o debate seria um jogo de cartas marcadas que só privilegiaria o discurso deles. Qualquer outra forma de debate equilibrado eles desqualificam como “um desrespeito à dimensão espiritual do conhecimento religioso" ou “incapacidade de transcender até o conhecimento metafísico”. Seja lá o que isso signifique.

Bom, não importando que eles não façam da parte deles, faremos da nossa. Vamos apresentar os “limites” do conhecimento científico. Algo que, por sinal, sempre me preocupo em fazer ao início de minhas palestras sobre “aumento do aquecimento global”. E o faço bem ao gosto de nossos “críticos”, chamando de modo irônico nossas limitações de “pecados”.

Comecemos por fazer essa apresentação usando as palavras do físico Richard Feynman.

"O conhecimento científico pode ser descrito como um grupo de asserções com graus variáveis de incerteza; algumas mais prováveis que outras, mas nenhuma absolutamente certa".

Feynman está honestamente apontando o aspecto incerto do conhecimento científico; mas, lembrando o filme “Seven”, esse é um dos sete pecados capitais que a escolástica lhe imputa. A escolástica é uma modalidade de pensamento cristão surgida na Idade Média, que tenta conciliar a racionalidade platônica e aristotélica com a concepção cristã de contato direto com a verdade revelada. Por extensão de sentido, passou a designar qualquer filosofia elaborada em função de uma doutrina religiosa; cujos seguidores perpetuam uma doutrina acrítica, ortodoxa, tradicionalista e dogmática. Vamos, então, seguindo o enredo do filme, conhecer esses setes pecados capitais cometidos por nosso detetive segundo a concepção escolástica.

O conhecimento científico é verdadeiro?

Não, mas também não é falso.

Pretende ser plausível, o máximo que for capaz. Não se apresenta como verdade, se expressa por probabilidades. Portando, seu primeiro pecado capital é a probabilidade.

O conhecimento científico é indubitável?

Não, mas também não é duvidoso.

Prima por ser dubitável, sendo inseparável da dúvida, que não o deixa se estagnar no dogmatismo. Portando, seu segundo pecado capital é a dúvida.

O conhecimento científico é perfeito?

Não, mas também não é malfeito.

Por ser imperfeito, é plenamente perfectível e, por ser uma obra aberta e inacabada, está sempre pronto para reformular-se. Portando, seu terceiro pecado capital é a imperfeição.

O conhecimento científico é definitivo?

Não, mas também não é indeciso.

O seu parecer é decisivo e não hesita, sabendo que seu risco de errar foi minimizado, dentro das circunstâncias, mas que não foi eliminado completamente. Portando, seu quarto pecado capital é a contingência.

O conhecimento científico é provado?

Não, mas também não é inválido.

Observação e experimentação fazem dele a representação da realidade mais provável criada até hoje. Mesmo assim, não pode fazer afirmações categóricas sobre ela. Portando, seu quinto pecado capital é a refutabilidade.

O conhecimento científico é descoberta?

Não, mas também não é ilusório.

Inventa modelos que tentam reproduzir, com êxito progressivo, o funcionamento da natureza; o que não evidencia serem descrições fiéis de como ela realmente é. Portando, seu sexto pecado capital é a invenção.

O conhecimento científico é certo?

Não, mas também não é errado.

Tem um nível de incerteza que sempre está se esforçando por tornar o menor possível. Portando, seu sétimo pecado capital é a incerteza.

Agora, faço um desafio para que os defensores de outros métodos de conhecimento não científicos façam uma autocrítica tão profunda quanto a ciência é capaz de fazer. Ela não tem medos de suas limitações; aliás, sempre as enfrentou e analisou franca e metodologicamente. Esse é um de seus maiores méritos, o qual lhe dá a capacidade de reformular-se e lutar contra posições dogmáticas.





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