A IGREJA E O IMPÉRIO ROMANO.


Muitos cristãos ou simpatizante do cristianismo, num afã de minimizar ou justificar os terríveis atos da Inquisição, buscam colocar em pé de igualdade, ou até passando a ideia de que foi mais cruel e injusta, a perseguição dos cristãos pelos romanos. É sempre a velha estória de que os pagãos mataram cristãos às pencas nos alvores do movimento. Então, trazem sempre à tona os mesmos e já tão batidos episódios melodramáticos e grandiloquentes de quando eles eram jogados aos leões ou aos cães, serviam de diversão no "pão e circo" romano e ardiam como tochas humanas nos jardins de Nero. E, assim, arrancam lágrimas e pena da audiência com poucos conhecimentos históricos.

No fundo, não passa de uma visão ingênua, descontextualizada, fragmentária e reducionista historicamente. Antes mesmo de se tornar religião oficial do Império Romano sob os auspícios de Constantino I, a igreja de Roma já tinha alcançado uma hegemonia predatória em episódios pregressos de intolerância e repressão contra membros da própria comunidade cristã. Desde o seu início, suas táticas de expansão promoveram o ódio para os desviantes e mortes sensacionalistas de seus devotos fiéis.

Constantino I apenas se aproveitou da índole preexistente da igreja fundada por Pedro e Paulo; os corruptores precisam dos corruptos. E neste caso é difícil estabelecer quem é quem. A igreja esperava ansiosa por um imperador como Constantino I para consolidar sua supremacia religiosa na Antiguidade tardia. Alguns imperadores anteriores foram simpatizantes ou até se converteram, mas não tiveram a ambição e a megalomania suficientes para servirem aos propósitos análogos dos detentores da cátedra de Pedro. Não procede a noção de que a instituição católica era pobre e sem recursos materiais antes da oficialização. Se já não tivesse posse de um poder expressivo e um significativo número de convertidos, Constantino jamais se interessaria por ela. E é interessante notar que durante sua vida ele não se converteu ao cristianismo. A história oficial da igreja conta que foi só quando morreu que ele se tornou realmente cristão. Mas nem disso há comprovação histórica.

Agora, é bem conveniente pôr toda responsabilidade nas costas do Constantino, colocando o essencial do cristianismo como vítima ingênua e seduzida dos desmandos de um homem com delírios de grandeza. Esse homem foi mais usado do que pôde usar. No final das contas, o ingênuo foi ele, aproveitaram-se de sua ganância para construir um poder político que se perpetuou além do império. Algo assim jamais ocorreria sob os auspícios de imperadores como Adriano, Trajano ou Marco Aurélio. Temos que mudar essa visão de que a igreja foi contaminada pelo império romano. O império é que foi infectado pelo cristianismo e morreu desta doença, mas infelizmente o vírus encontrou outros hospedeiros e sobrevive até hoje, com grande risco se de alastrar por toda a terra e acabar com toda a vida saudável que restou na humanidade.

Quanto ao "pão e circo", tenho a dizer que muito do espetáculo foi incentivado pelos próprios padres da igreja em sua ânsia de promover uma propaganda sensacionalista da nova religião e converter os mais impressionáveis. Estes diletos porta-vozes da palavra de deus encorajavam os pobres coitados a imitar o sacrifício da divindade imolada e dar testemunho do poder de sua fé. Ora esse modo de testemunhar se baseia num argumento falacioso; o apelo ao estado de quem argumenta. O fato de sofrer ou até morrer por uma ideia não garante a veracidade da mesma; se assim fosse a ideologia nazista estaria comprovada, pois não foram poucos os alemães que morreram por ela e acreditando nela.

Se falarmos em bravura e abnegação, veremos que esses mártires não tinham nada disso. Se realmente tinham fé em tudo que seus presbíteros pregavam; então só estavam agindo de forma interesseira, trocando uma vida, muitas vezes miserável, por outra de abundância e glória no céu, além de acelerar a salvação e eliminar o risco de se desencaminharem durante o resto de vida que pudessem viver. A propaganda cristã sempre privilegiou esse derramamento de sangue inútil e condenou sumariamente os que questionavam o valor destas demonstrações tétricas de fé. Bem antes de Constantino, o conjunto doutrinário da patrística já conduzia a eliminação quase total da primeira das heresias: o gnosticismo; justamente por ir contra o suicídio de pessoas simplórias e de padres vaidosos que desejavam imitar a paixão de cristo. Aos olhos já inquisitoriais dos pais fundadores da santa madre igreja, todos os que defendiam o exercício da escolha eram indignos da “vida” e da “verdade” oferecidos em holocausto pelo cristo, o cordeiro propiciatório.

Não quero, com isso, minimizar as perseguições movidas contra os cristãos por imperadores como Nero. Todavia, nem sempre era assim; a regra geral em diversos períodos do império, principalmente na época da patrística até Marco Aurélio, se caracterizava pela convivência pacífica, sem uma repressão organizada e instituída nos poderes do Estado.

No quesito justiça, é uma falta de visão histórica nivelar os tribunais romanos e os da santa inquisição. Os romanos, via de regra, se empenhavam em respeitavam suas leis e promover um ideal de justiça, tanto é que o direito romano ainda continua sendo um modelo para a legislação atual. Só ia a julgamento quem era denunciado e denúncias anônimas não eram admitidas, sendo encaradas como um mau exemplo e indigna de um cidadão romano. Nos julgamento, os acusados ficavam livres para desmentir as acusações e, se o fizessem, eram soltos depois de uma simples oferenda aos deuses. Aos obstinados, que insistiam em se declarar com pompa e circunstância a sua condição de cristãos convictos, era dado um tempo para que pensassem melhor, mesmo quando não queriam. Se, ainda assim, não mudassem o teor do discurso; os magistrados romanos, por força da lei, eram obrigados a condená-los. Como demonstra a carta do imperador Trajano aprovando a maneira de tratar a questão de Plínio, o governador da Bitínia (uma província da Ásia Menor):

Plínio o Jovem. Epist. X, 97 (resposta de Trajano a Plínio).

“Caro [Plínio] Segundo, tens seguido adequado proceder no exame das causas daqueles que te foram denunciados como cristãos (qui christiani ad te dela ti fuerant). Não se pode instituir uma regra geral (in universum aliquid) que tenha o valor de norma fixa Não devem ser perseguidos de oficio (conquirendi non sunt, isto é investigados por iniciativa oficial). Se forem denunciados e confessarem, é preciso condená-los, mas com a seguinte restrição: quem nega ser cristão (qui negaverit se christianum esse) e disso der prova manifesta, a saber, sacrificando a nossos deuses, ainda quando seja suspeito em seu passado, seja perdoado por seu arrependimento (veniam ex paenitentia impetret). Quanto às denúncias anônimas, não devem ter valor em nenhuma acusação, pois constituem um exemplo detestável e não são dignas de nosso tempo.”

Agora, os julgamentos inquisitoriais não davam pelota nem ao direito canônico, não havia nenhuma preocupação em manter um mínimo de imparcialidade ou, pelo menos, de aparentá-la. Os acusados, com poucas exceções, já chegavam condenados; a tortura não podia ser alegada em juízo como motivo para as confissões, quem defendesse o réu era imediatamente arrolado nos autos como cúmplice ou conivente. E tudo isso era assistido com entusiasmo pela massa irresponsável, a qual muitos inocentam alegando que não tinha culpa direta nos crimes praticados por um grupo da elite do clero.

Tentem achar sentido e coerência na aplicação do direito canônico em julgamento como os dos templários e os da santa inquisição. Quanto a esse aspecto cito a conclusão de Geraldo Pieroni em “Banidos”:

“É quase inútil buscar uma lógica no sistema da aplicabilidade das penas inquisitoriais. O degredo — uma das penas desse sistema — não escapa a essa regra. A arbitrariedade dos juízes conjuga-se com a disparidade dos direitos, dos costumes e das normas reinantes: por um mesmo tipo de crime o réu poderá sofrer penas bastante diferentes, dependendo das decisões e do arbítrio dos eclesiásticos magistrados dos tribunais inquisitoriais. Independentemente da gravidade de seu crime, a reparação deve ser feita. Ela é desejada pelos cristãos-velhos, ela é cobiçada pelos juízes, que almejam restabelecer a paz social abalada pela heresia dos indesejados. O respaldo maior reside no rei — o juiz supremo.”

E que reparação é essa tão desejada e cobiçada? Talvez possamos detectar, neste outro trecho do mesmo livro, um dos mais fortes interesses da igreja na condenação dos “hereges”, mesmo que, para isso, tivesse que se valer de denuncias anônimas ou inexistentes, falso testemunhos ou provas inconcludentes:

“O Dicionário dos Inquisidores revelava-se suficientemente claro com relação ao confisco do patrimônio dos condenados: os bens do herético são de pleno direito confiscados desde o instante em que o delito é cometido”. O confisco dos bens figurava entre as penas estabelecidas pelas leis civis e eclesiásticas. O imperador Frederico I, em 1220, determinava que “todos os heréticos de ambos os sexos serão considerados infames e espoliados de seus bens, os quais não serão jamais devolvidos e em nenhum caso seus descendentes poderão se beneficiar deles”. O papa Inocente III decretou, em 1199 e 1200, o confisco dos bens dos hereges conforme aquilo que já era definido pelas leis civis. Essas disposições foram reconsideradas em 1225 pelo Concílio de Latrão, durante o pontificado do mesmo papa, e confirmadas, em 1252, por Inocente IV. Na constituição Ad extirpandam, o papa ordenou que os bens confiscados fossem distribuídos em partes iguais: a) para a cidade em que se processou a condenação, b) para a Inquisição do lugar, c) para uma caixa comum do inquisidor e o bispo. Bonifácio VIII, em 1295, declarou na bula Cum secundum leges que os bens dos hereges poderiam, por direito, ser confiscados e proibiu as autoridades temporais de tomarem posse do patrimônio antes que os juízes eclesiásticos tivessem pronunciado as sentenças. Clemente V, em 1306, ordenou que os juízes tomassem cuidado de não confiscar os bens da Igreja quando se tratasse de um clérigo herege.”

Esse mesmo padrão de comportamento oportunista sempre existiu antes e depois da aproximação com o poder romano. No séc. IV teremos o templo de Cibele transformado na atual basílica de são Pedro e talvez os primeiros heréticos queimados vivos; uma seita de cristãos montanheses que ainda adoravam Cibele e admitiam o sacerdócio de mulheres. Depois da queda do império romano no ocidente (uma oportunidade premeditada?), houve a cooptação dos ditos reis bárbaros. Entre eles o soberano franco Clóvis, cujo fato marcante de sua biografia é a destruição do Reino de Toulouse (419-507) por tropas católicas ao seu comando, o intuito era combater uma versão heretizada do cristianismo, designada por alguns como ‘fides gothica’, que vinha sendo tolerada entre os visigodos convertidos desde meados do séc. IV. Indo um pouco mais além, encontraremos Carlos Magno com seu revolucionário e democrático método de conversão; ele propunha a seus súditos escolher livremente entre se converterem ou serem decapitados. Isso promovia tanto o crescimento absoluto como o relativo do contingente de católicos na população.




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